Ayla e Júlio tinham passado parte da sua infância com os avós maternos, na casa que lhes fora deixada como herança. Situada na rua mais pitoresca de Peniche, oferecia uma vista deslumbrante das falésias e do mar ao fundo. Dividiram a casa em dois apartamentos, cujo terraço exterior era comum. Júlio explorava a loja situada no piso inferior — uma papelaria com uma parte de mercearia, excelente para os turistas pararem e reabastecerem as energias com pequenos lanches e água fresca.

Outrora, fora a mercearia do avô Artur — um homem meigo, nascido localmente, que deixara muitas saudades — e da avó Piedade, “a rosa do deserto”, como a chamava o avô Artur. Segundo ele, naquela terra antes árida e nos arredores (e em todo o planeta, nas noites em que o vinho ajudava no efeito romântico), não existia mulher mais bela do que a sua amada. A avó Piedade refilava sempre com as declarações românticas do avô Artur, mas, assim que se retirava da sua presença, sorria timidamente, sentindo-se como uma jovem garota apaixonada.

As férias de verão eram passadas com os avós. Ayla e Júlio ajudavam-nos nos afazeres da mercearia e da casa. Ao final da tarde, acompanhavam-nos até à horta, nas regas que eram sempre o ponto alto dos dias. Ayla e Júlio colocavam os pés descalços nos canais que os avós faziam no terreno para a água chegar às plantações. Assim que o avô ligava a bomba d'água, surgia um reboliço de água com terra que fazia ambos fugirem à gargalhada, enquanto sentiam aquele lamaçal envolver-lhes os pés.

Ao fim de semana, iam até à praia do Baleal. A avó Piedade era mais rigorosa nas suas vigílias marítimas do que os próprios nadadores-salvadores.

-  Ayla, não vás tão fundo! Volta para cá! Júlio, não sigas a tua irmã! - gritava sempre, ao mínimo centímetro que notasse movido para longe da sua miragem.

- Francamente, Artur, consegues ser pior que os miúdos!

O avô Artur crescera perto do mar. Aliás, às vezes dizia que crescera no mar. Peniche era a sua terra natal, e não havia maré que o fizesse retroceder. Aprendera a nadar sozinho, com os amigos e irmãos. Na sua juventude, finalizar os dias com mergulhos no mar era um ritual quase religioso.

- Calma, querida! Eles sabem nadar e não estão tão longe assim... Eu estou perto deles! - acenava o avô Artur com o braço estendido, tentando acalmar o coração frágil da sua Piedade.

- Tu sabes que as correntes podem ser fortes. Venham mais para a beira, por favor!

- Oh, Piedade, tem piedade, por favor... - dizia o avô Artur, num tom brincalhão, para tentar amenizar a preocupação da sua companheira de vida - o que acabava por surtir o efeito contrário.

Ayla recordava sempre com muito carinho e saudade esses momentos com os avós. Era difícil lembrar-se sem que o coração ficasse apertado. Tinham partido há seis anos - primeiro a avó, com uma terrível pneumonia mal curada, e depois o avô Artur, com o coração partido.

O avô Artur dizia sempre que, se uma mulher não conseguisse fazer um homem sentir-se como um tolo invencível, então não era amor de verdade.

- O amor de uma mulher faz-te sentir capaz de lutar por tudo. Não importa qual o desafio, se ela estiver ao teu lado, tu desejas lutar até ao fim.

Ayla e Júlio ficavam sempre pasmados com as declarações românticas tão firmes do avô Artur. Sabiam que a avó Piedade era essa mulher para ele. E isso ficou ainda mais confirmado quando ela partiu, ao verem o seu avô Artur sentir-se incapaz de vencer a dor da perda e da solidão.

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